Universal Concreto
Ana Catarina Pereira
Roberto Saviano
Fuga Maldita
Roberto Saviano nasceu em Nápoles, há 29 anos. É jornalista, mas vive prisioneiro de um livro que já vendeu mais de um milhão de exemplares, só em Itália. “Gomorra” é o seu testemunho pessoal dos meandros da Camorra - a máfia que controla a região da Câmpania. As inevitáveis consequências da sua denúncia traduzem-se em permanentes ameaças de morte e uma vida no escuro. Diariamente, Roberto Saviano acorda em cidades diferentes, escoltado por forças policiais.
Apesar de apontar o dedo às principais instituições de poder, ao mundo da moda e ao sector da construção, acredita que a comunidade internacional começa a olhar para a máfia italiana com outros olhos. Numa entrevista exclusiva para a Magnética, o autor afirma não temer a morte nem estar arrependido da denúncia que realizou.
A história de um homem que arriscou a vida para escrever um livro.
Pela leitura do livro “Gomorra”, parece fácil aceder a muitas das informações que relata, como se tudo estivesse a acontecer às claras, diante dos olhos do mundo inteiro. É fácil, para um italiano, conhecer estes factos?
Para um italiano não é assim tão simples. Mas, para um italiano do sul, que nasce e cresce onde os cartéis criminais (Máfia, Camorra, ‘Ndrangheta) estão presentes, modificando o rosto económico de muitas áreas, sim.
Para a maioria dos italianos este é um problema que envolve apenas os clãs, ou é uma rede de criminalidade organizada entre todos os cidadãos?
É uma rede de tal modo minuciosa que envolve todos os cidadãos, embora, muitas vezes, eles próprios não se apercebam disso. Por exemplo, na área de Nápoles, um conhecido clã, entre muitas das suas actividades económicas, produz pão e detém o monopólio das vendas. Assim, os cidadãos não têm alternativa: têm de comprar os seus produtos. Por sua vez, as auto-estradas do sul de Itália foram construídas com o cimento dos clãs, embora todos os italianos as utilizem. Desta forma, as actividades dos clãs estão presentes no quotidiano de todos os cidadãos.
Em “Gomorra” existe uma listagem dos vencimentos que os envolvidos no Sistema recebem mensalmente, em paralelo com a manutenção de uma vida profissional rotineira. Para muitos, este é um “extra” que encaram com toda a naturalidade, mais uma fonte de rendimentos que lhes ajuda a pagar as contas?
Para muitos é a única fonte de rendimento numa região que tem a maior taxa de desemprego de toda a Itália.
O que leva uma criança de dez anos, ou menos, a querer pertencer a um clã? Que espécie de misticismo foi criado à volta deste Sistema, para conseguir seduzir uma fatia tão grande da população?
Se, por um lado, o Estado não consegue impor as suas regras em vastas áreas do sul de Itália, por outro, a Camorra exerce, através dos seus códigos de comportamento, um domínio sobre as gerações mais jovens. Infelizmente, a mensagem que passam é que filiar-se nos clãs é a única alternativa e que a vida de camorrista é aventurosa, com muito dinheiro e repleta de mulheres. Os meses, ou anos, passados a monte, longe das famílias, fechados dentro de verdadeiras tocas de ratos, são factos que não têm espaço nas representações cinematográficas e na literatutra. Os próprios camorristas alimentam este mito, vestindo-se como os notáveis de Hollywood e construindo casas faustosas.
Parece verificar-se uma subversão total de valores. Uma criança mata e acredita que o faz em defesa da própria família. Ainda é possível alterar esta mentalidade?
As mentalidades mudam através de políticas económicas adequadas, se existir uma alternativa.
Todos os sectores de actividade (têxteis, alimentação e transportes) se encontram, de alguma forma, envolvidos no crime organizado?
Infelizmente sim. A rede é extremamente minuciosa e os camorristas são empreendedores muito hábeis. Em 1989, quando caiu o muro de Berlim, a Máfia (que obviamente tinha os seus espiões na Alemanha do Leste) deu ordens para que estes comprassem imóveis, caves, apartamentos e, sobretudo, garagens. Com o reacender da economia, estes espaços tornar-se-iam cervejarias, restaurantes e clubes nocturnos.
O livro parece indicar o próprio sistema capitalista como o principal causador ou a origem desta rede organizada. Esta percepção é correcta?
Não é o capitalismo em geral, mas o tipo de capitalismo que se desenvolveu na Câmpania que, de facto, é um monopólio.
O que torna a Camorra invencível?
O volume e a minúcia dos seus negócios. A Camorra caracteriza-se por uma estrutura empresarial particularmente ágil e por uma enorme liquidez.
A envolvência dos sistemas político e judicial é uma realidade crónica?
Existe, obviamente, conivência de todos os âmbitos.
A distinção entre vítimas e culpados do Sistema é sempre clara?
De forma alguma. Esse é o motivo pelo qual algumas vítimas inocentes da Camorra têm caído no esquecimento. Infelizmente, sobre os mortos da minha terra pesa sempre a suspeição. É uma reacção em cadeia: morre uma pessoa sem cadastro, mas depressa nasce a suspeição. Os “media” nacionais transmitem a notícia debaixo do silêncio, e depois tudo cai no vértice mediático que não pode deter-se em pormenores durante muito tempo.
Para não ter que se esconder ou viver com protecção policial constante, poderia ter usado nomes falsos no seu livro. Porque não o fez?
Suketu Mehta é um autor indiano que escreveu “Maximum City”, um livro muito semelhante ao “Gomorra”. Descreveu detalhadamente a máfia de Mumbay, mudando todos os nomes. Foi obrigado a deixar a Índia e a voltar à América, onde vive e trabalha. Os chefes mafiosos ressentiram-se porque, entre outras coisas, não os tinha chamado pelos seus nomes verdadeiros. Se eu tivesse mudado os nomes acredito que a minha situação não seria muito diferente.
Em termos pessoais, está arrependido?
Enquanto escritor sim, enquanto homem não.
Como define o medo?
Não tenho medo. Ou melhor: a morte não me assusta, temo mais a difamação. Pelo menos, esta é a fase em que me encontro actualmente. A Camorra está a tentar, com todos os meios que tem ao seu dispor, deslegitimar o meu trabalho. Talvez o medo seja isso mesmo: a impotência.
Sentiu dificuldades em manter a objectividade e a neutralidade de um observador/repórter?
Não penso que tenha sido objectivo e imparcial. Sinto-me extremamente ligado às histórias que contei. O meu único ponto de referência foi, talvez, Truman Capote e as suas teorias do “New Journalism”. “Gomorra” é uma novela não ficcionada - um trabalho que se situa entre um romance e uma reportagem. Não é um ensaio e, por isso, ultrapassou o interesse dos que são directamente visados. Também não é uma história sem nenhuma relação com a realidade. É um romance suportado por dados, e esta fórmula foi ao encontro do interesse dos leitores.
Qual a sua posição relativamente à possibilidade de legalização de drogas leves?
Seria uma bela chicotada nos negócios dos clãs.
Que soluções aponta para o fim do tráfego?
Encontrar uma alternativa económica.
A Camorra é uma organização cujos meandros e efeitos já ultrapassaram o estado italiano?
A Camorra da Campânia, juntamente com a ‘Ndrangheta calabresa, é actualmente um dos cartéis criminais mais influentes do planeta. Os seus negócios de tráfico de estupefacientes e do sector da construção já ultrapassarm as fronteiras nacionais. Para confirmar isto, basta pensar que as maiores detenções entre as fileiras da Camorra foram feitas pelas forças policiais espanholas em Espanha.
Disse também que Espanha acolhe camorristas com a condição de que estes não pratiquem quaisquer homicídios. Como chegou a esta conclusão?
Em Espanha, a Camorra gere o tráfico e a construção civil na costa do Sol.
Se este é um problema de terrorismo internacional, considera que o apelo a organizações como a ONU é imperativo?
O problema é que na Europa não existe uma posição unitária em relação ao crime de associação mafiosa. Mas, depois dos eventos de Duiburg (Alemanha) em Agosto de 2006, e das detenções em Espanha, algo está a mudar.
Por que razão os organismos internacionais com poder para actuar ainda não o fizeram?
Devido a problemas de competência jurídica e territorial.
Ana Catarina Pereira
(Tradução do italiano Rita Caetano)